20.4.10

“Longe é o lugar onde a gente pode viver de verdade”


Longe é melhor do que aqui? Lá eu vou ser diferente e vou gostar mais de ser quem eu sou? Do que adianta eu ir pra longe quando o que eu quero de verdade é fugir de mim?



Os Famosos e os Duendes da Morte é sobre alguma coisa assim. Mas não é sobre quase nada daquilo que as revistas, blogs e sites de cinema dizem. Há pouco mais de uma semana até agora, desde que vi o longa dirigido por Esmir Filho no cinema, ainda não me deparei com nenhuma resenha, crítica ou comentário suficientemente digno do impacto desta pequena obra-prima para o cinema brasileiro.

Falam sobre a geração Youtube, a geração blogueira, a geração conectada que leva uma vida online. Críticos e cinéfilos publicando praticamente um release, tentando encontrar como descrever de uma maneira rasa um filme que não é fácil se ser explicado, porque é preciso sobretudo ser sentido. Copiando uns aos outros, apelam para comparatismos e usam Gus Van Sant como bode expiatório. Apontam movimentos de camera e decupagem, de Paranoid Park e Elefante (e muitas vezes nem justificam, só jogam a esmo a comparação). Sinceramente em nenhum momento durante a sessão, lembrei de Gus Van Sant ou de qualquer coisa que eu já tenha visto. Porque me parece um filme muito peculiar.

Se era intencional que fosse um filme sobre a geração Youtube (ou seja lá o termo que querem dar para os novos novos jovens), isso ficou relegado ao segundo plano. A internet é só um elemento entre tantos outros que compoem uma história muito maior e muito mais importante. Os Famosos e os Duendes da Morte é sobre não fazer parte. O guri anônimo que protagoniza a história vive numa cidade do interior, ao lado de Lajeado – não lembro se o filme chega a estabelecer se é Teutônia ou alguma outra cidade nas proximidades. Ele quer ir embora. Não se encaixa ali naquele universo. Não quer ir na festa de São João da comunidade, não quer visitar o túmulo do pai, não quer jogar bola na Educação Física, não quer fazer a prova de Biologia. Um show do Bob Dylan (provavelmente em São Paulo) representa a saída física daquele lugar. Porque o protagonista já tem uma válvula de escape virtual através de um espólio de videos no Youtube deixados por Jingle Jangle, a irmã do melhor amigo que se jogou da ponte que dá acesso a cidade. Há uma placa de saída no interesse do guri por um rapaz mais velho (interpretado por Ismael Caneppele, roteirista e autor do manuscrito que deu origem ao roteiro do filme), um tipo cabrero que havia ido embora da localidade e voltou depois do suicídio da menina, com quem mantinha uma relação de cumplicidade.

Acerca das intenções de partir, não faltam simbolismos que podem ser encaixados e interpretados conforme a leitura de cada espectador. Em uma das cenas fantasiosas do filme, o protagonista imagina estar no palco com Bob Dylan, que na verdade é o personagem de Ismael Caneppele, insinuando um hibridismo de desejo e fascínio, tanto pelo ídolo quanto pelo conterrâneo – os dois representam de alguma forma, a porta de saída. Mais evidente é um dos videos no Youtube, em que Jingle Jangle aparece com um saco de plástico envolvendo a cabeça, enquanto Caneppele o segura em seu pescoço – as pessoas (ou os personagens e por isso o autor) estão sufocadas naquela cidade.

Em certo momento acontece outro suicídio. Uma dona-de-casa viúva, mãe de dois filhos adolescentes, se joga da ponte. Não fica claro se outras mortes apontadas na história também se deram ali. O fato é que a ponte é uma passagem para além daquele lugar ou, como o protagonista mesmo diz, “do cu do mundo”. Mas não que a cidade seja um lugar ruim. É uma cidade pequena como outras tantas do interior do Rio Grande do Sul, de colonização européia, com tradições e dogmas que persistem há mais de um século de imigração. Naturalmente essas pessoas crescem, trabalham e têm uma família ali, dando continuidade a um ciclo. Mas há pessoas que não se conformam com isso porque não se sentem parte e, por alguma razão na construção de identidade e por isso por desejo, foram deslocadas desse ciclo. Existem então duas possibilidades de fuga e as duas levam à ponte. Atravessar e ir embora é a escolha mais difícil, porque invariavelmente, signifca levar a si mesmo e todos os descontentamentos e angustias consigo. A outra, escolhida por Jingle Jangle é, quem sabe, longe o suficiente para não viver a realidade.

O filme não aponta com clareza e, inclusive, termina antes disso, mas o guri muito provavelmente vai precisar se encontrar com a sua sexualidade. Numa leitura mais apronfudada e também evasiva, pode-se perceber nesse sentido algumas respostas para o comportamento do protagonista, sobretudo ao que diz respeito ao rapaz que volta para a cidade. E isso está na sutileza de ações e reações, não só na sugestiva cena na estação elétrica em que o triângulo amoroso torna-se carnal.

Resposta aliás, não é aquilo que Os Famosos... se propõe. O barato do filme é justamente levantar questionamentos sobre ele mesmo. Esmir Filho consegue fazer um cinema introspectivo e lento, sem deixar de ser envolvente. Isso porque, diferente de outros jovens realizadores Brasil afora, ele não faz cinema só para o próprio umbigo e, diferente de realizadores que já estão na ativa há algum tempo, não subestima a audiência entregando a história mastigada. Ele toma a frente de uma nova geração de realizadores, saídos de faculdade de cinema e sem os vícios televisivos que tanto estigmatizaram o cinema nacional. Traz na garupa um amontoado de prêmios em festivais internacionais e a assinatura da Warner na distribuição, abrindo as portas para realizadores independentes e mostrando uma identidade cultural diferente das estéticas que marcaram o cinema brasileiro nos últimos dez anos, seja da fome, da favela, da pobreza ou do sertão.

O maior elogio que eu posso dar ao filme do Esmir Filho é dizer que me causou o mesmo efeito de quando vejo algum filme novo do Tarantino, a vontade criar para estar no set. Os Famosos me motivou a tirar trabalhos da gaveta. E a gente que gosta da coisa sabe que cinema bom de verdade é aquele que através da emoção motiva.

3 comentários:

Mateus disse...

Juliano, gostei bastante do que vc escreveu...
O filme causou a mesma sensação em mim, realmente é um filme único.
Tb escrevi no meu blog sobre o filme, depois dá uma olhada:

http://barbassa.zip.net/arch2010-04-11_2010-04-17.html

Anônimo disse...

Muito bom o seu texto. Eu também li diversas críticas que debandavam para uma análise superficial, e superficialidade definitivamente não combina com "Os Famosos...". Parabéns pela leitura sincera desse filme tão lindo!!

Juliano Carpeggiani disse...

Valeu, Mateus e Anônimo. Obrigado pela leitura!