24.10.12

'Mind fuck' e 'o quê que vocês já sabem que estão apenas esperando que eu diga?'


Dormentes não entenderam. Pensaram que era mais do mesmo, que a 'Avenida Brasil' era só mais um programa de TV como todas as outras novelas deslocadas e antiquadas. Pra comer assunto de meia página, é suficiente saber que esse cara roteirizou 'Central do Brasil', e junto com Walter Salles e Marcos Bernstein redefiniu o cinema brasileiro até levar o filme pro Oscar na gringa. O sujeito fez um estrago na TV porque deu um salto de qualidade narrativa que nenhum outro profissional de novela em exercício tem capacidade pra acompanhar. Fudeu, Globo. Fu-deu. E se o prezado leitor for um desses elementos que chamam Romero Britto de cafona no Facebook e acham que arte e identidade popular não podem ser apreciadas por um víés erudito, sinto muito mas vaza. Mas vaza mesmo. A conversa aqui é entre os gente-fina. Aqueles que já se ligaram na missão ainda quando Jack Shephard abriu os olhos e se deu conta que sofreu um acidente de avião.

Norteados por isso, João Emanuel Carneiro e Amora Mautner (diretora) soltaram a espinagarda e sairam dando tiro de canhão. A 'Avenida Brasil' usou o mesmo artifício dos grandes contadores de histórias contemporâneos, M. Night Shyamalan e J. J. Abrahams pra citar dois. A matemática dos dois é a mesma: contar uma história por duas perspectivas: 1) a evidente, aquela que se consegue perceber porque é a que nos é conduzida e; 2) a escondida, aquela em que são reveladas verdades sobre os fatos/personagens que estavam aí o tempo todo, mas que não eram ditas claramente. Pensa em 'O Sexto Sentido': a história de um menino que vê fantasmas o tempo todo e é paciente de um psicólogo em crise no casamento. Foi esse filme que nós vimos durante mais de uma hora e meia na projeção. Até o momento em que a gente descobre, com um nocaute de esquerda, que não era nada disso. O psicólogo é mais um entre os outros fantasmas que o menino vê. Estava morto o tempo inteiro e se recusava a aceitar isso. Encarar um trauma. E sobre encarar um trauma e descobrir quem a gente realmente é, Shyamalan é um brincalhão. Faz 3D sem precisar de usar óculos tridimensional. Ele foi lá e fez de novo em 'O Corpo Fechado', 'Sinais' e 'A Vila'... Aí quando ele queria dizer mais alguma coisa, quando ele quis dar um passo além, teve um povo que não entendeu, deu uma detonada. E aí o diretor deu uma balançada, perdeu a paudurecência, se fez de loco e foi testar outras fórmulas mais comerciais de tirar as pessoas da caverna.

Mas a lógica desses storytellings, é que algo está sendo dito o tempo todo, mas distraído com aquela que (aparentemente) é a unica narrativa, o espectador leva um baque no momento em que lhe é revelado o verdadeiro sentido (ou plot ou verdade) do que estava vendo. É o mind fuck ou o orgasmo intelectual. Geralmente, funciona se conduzido por perguntas, que às vezes nem ficam claras exatamente, mas que sugerem que há algo a ser desvendado. Foi assim que 'Lost' foi contado durante seis anos. Do princípio em que uma aparente realidade leva a uma verdade que leva a outra realidade e que nunca mais cessa. 'Lost' utilizou a fórmula do Shyamalan multiplicada em etapas e temporadas, deixando claro desde o início que algo estava acontecendo e não se sabia bem o quê. A experiência dos roteiristas deu tão certo, que justamente por estarem fazendo pela primeira vez, não sabiam como conter os danos colaterais de tanta expectativa. Tanto que a quinta e a sexta temporada ficaram quase indecifráveis em alguns momentos, que só a maturação do tempo vai conseguir explicar. 'Lost' foi uma punheta tão grande que até agora a gente tá sentido bater nas costas o resultado.

O espectador virou junker porque sabia que algo que aparentemente não está sendo dito estava acontecendo. Ele era orientado o tempo todo a crer nisso e ficar se perguntando. E eu estou falando sobre 'Avenida Brasil'. Cre-se numa realidade até ser obrigado a encarar uma outra verdade e entrar em outra realidade e assim progressivamente. A verdade na redenção de pessoas que se odiavam. O trauma que vêm à tona. Perdão, superação, resgate kármico... Como a mulher que quer tudo tanto que acaba tendo o resto de tudo.


É uma pergunta. A pergunta é o artifício que move um envolvente storytelling. Mas saibamos bem que nem todo bom storytelling precisa usar de artifícios envolventes pra ser bom. Voltamos a 'O Sexto Sentido'. "O que está acontecendo?" nunca te é evidentemente perguntado e você assiste comprando só a narrativa do psicólogo e o menino. O truque é mais baixo e funciona melhor em longa-metragem do que seriado. Na série, a pergunta é "O que vai acontecer?", que também serve para o João Emanuel Carneiro. Mas por se tratar de uma estrutura única de narrativa continuada e duração de alguns meses, a pergunta narrativa do autor é "o quê que vocês já sabem que estão apenas esperando que eu diga?". Nesse caso, o 'mind fuck' é o óbvio, mas tratado como inesperado. Na cena em que as pessoas estão catando lixo no aterro e quando uma delas se vira e vemos que é a Carminha, deu pra sentir o cheiro do lixo saindo da TV e se espalhando pela sala de casa.

Agora, se Shyamalan é um brincalhão, Carneiro tem na história das pessoas traumatizadas do lixão o seu playground. O grande 'mind fuck' dessa história sobre a dualidade do Bem e do Mal e sobre a atração do Lado Negro da Força só veio no último capítulo, num diálogo específico entre Nina e Carminha na pia da cozinha:


CARMINHA
Destino caprichoso esse nosso hein, traste?
Sempre juntas.

NINA
Parece que é isso mesmo.
Sempre juntas.


O 'mind fuck' é que o tempo todo essa era uma história sobre reencarnação.